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domingo, outubro 24, 2004

Calendário

Ainda que leve mais de 24 horas de atraso em relação à tua irreprensível calendarização das efemérides, deixo-te um céu de dilúvio a coroar o dia. Fica então um céu de chumbo para tu seres feliz e te ires entretendo a gravar sózinha todas as datas vãs que possas ainda fazer questão de vir recordar. Mas deixa-me a mim e aos meus esquecimentos. Deixa-me prosseguir o Domingo sem culpas, liberta do juízo que te pode merecer a minha total distracção. É-me indiferente que te pareça imperdoável o que me passou ao lado da lembrança. Na verdade, é a vivacidade da tua memória que me parece patética. Como todos os cultos erguidos sobre as coisas vãs, na inútil esperança de redenção pelo que é sem remédio. Crês na verdade que os dias têm número? E ainda que assim seja, acreditas verdadeiramente que a espaçada ocorrência da repetição nos pode valer depois da morte? ... Pois eu não! Deixo-te, portanto, a alinhavar palavras ralas num céu de chumbo e passo adiante do episódio de ter passado, sem saber, por cima do que não me lembrei. Não tenho o mesmo esmero que tu, reconheço. Não sei de calendários efémeros. Só sei que hoje é domingo e que me apetece ir à Feira de Colares. Mesmo a chover quero pegar de estaca uma hortênsia azul na varanda do meu quarto. E quero pão cozido em forno de lenha para o serão. E apetece-me aquele doce de maçã com dois paus de canela que a senhora do avental da Nazaré vende, na parte de dentro da curva que a estrada faz a seguir ao cruzamento. E apetece-me um chá quente, a seguir. Antes de voltar para casa, a fugir da chuva. No meu lugar preferido. No mesmo lugar de sempre. No que já era antes de ti. Deves lembrar-te ainda de todos os vícios que carrego. Deves lembrar-te ainda desta minha imensa dificuldade de prescindir das coisas que me apetecem. Pois bem, nada mudou. Os caprichos continuam os mesmos. Nenhum progresso. Só consegui corrigir um, durante todo este tempo que entretanto passou: tu. Só consegui libertar-me de ti. Já não me apeteces. Deixo-te, portanto, o céu de chumbo para rabiscares as tuas mensagens. Apetece-me Colares à chuva. E o pão cozido em lenha. E o doce de maçã e canela. E o chá quente com os jornais do fim de semana. Estou de saída para a Feira: apetece-me um pé de avenca azul pegado de estaca na varanda do quarto.

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