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domingo, outubro 24, 2004

O Dilúvio

Há sempre um certo cuidado transgressor nessa coisa de nos levantarmos a meio da noite. Como se a nossa presença desperta fosse um ruído infligido aos silêncios que a casa guarda, um inesperado estremecimento às harmonias da noite. Acontece-me frequentemente esta involuntária coincidência de me interpor a esses desertos vazios do sono. Como agora!... E ficar assim: absolutamente crente que sou dona do mundo e que ele me obedece à fala muda. E ficar assim: a escutar a sirene grave do navio que entra a barra, a contar os espaços que vão entre cada apito que esgoela na garganta apertada da cidade dormida, e a descobrir sinais a cada golpe de asa das gaivotas que esta noite debandam para terra.

(...)

6h 36 minutos. O céu que se vinha apertando ao longe desaba por sim sem nenhuma piedade. Chove torrencialmente. Varre as ruas e faz poças largas no jardim.

(...)

Clareou. Imagino que passe das 8h, agora. A casa vem vindo aos poucos do quarto à sala. Espanta-se a casa com o dilúvio, depois do sol da véspera, depois do dia morno e soalheiro de ontem. Eu não! Eu estava aqui. Vi quando o céu se apertou. Vi o golpe de asa que arribou as gaivotas ao grasnado no beiral do telhado. Vi na direcção do vento que propagou o apito do navio à entrada da barra. Vi quando os aviões começaram a desviar a rota de luzes, antes do feltro das nuvens. Vi. Vi daqui. Estava aqui. A ver. Interposta ao vazio. A estremecer harmonias. A desequilibrar silêncios. Ausente do sono. Trangredindo a ordem das horas. Aqui. E vi, sim. Vi. É sem surpresa, portanto: o dia amanhecido.

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